Ornamento grotesco |
Um dos primeiros exemplos do ornamento grotesco é o friso da Anunciação, 1486, de Carlo Crivelli (ca. 1430 - ca.1495), que se destaca pela deformação de elementos naturais e pela combinação original de volumes e cores. Nos grotescos de Luca Signorelli (ca.1450 - 1523) para a Catedral de Orvieto, pintados entre 1499 e 1504, emaranhados de objetos e criaturas estranhas constituem o fundo no qual se destacam cinco medalhões representando cenas da Divina Comédia, de Dante Allighieri (1265 - 1321).
Signorelli, Dante e grotescos, 1499-1504 |
Entre os mais célebres e influentes ornamentos grotescos encontram-se aqueles realizados por Rafael (1483 - 1520) para o forro e pilares das loggie papais, compostos de arabescos e linhas onduladas verticais, com animais e espécies vegetais entrelaçados (ca.1515).
Grotescos por Rafael e Giovanni da Udine |
Iniciado em solo italiano no século XVI, o grotesco se difunde por toda a Europa, a partir de então. O trajeto da noção de grotesco no tempo retira dela o sentido técnico específico de um tipo de decoração romana tardia (e de um estilo renascentista nela inspirado), transformando-a freqüentemente em adjetivo, para designar o que é bizarro, fantástico, extravagante e caprichoso. Dessa maneira o Dicionário da Academia Francesa (1694) normatiza o vocábulo, que passa à linguagem crítica em acepção ampliada, muitas vezes associado também ao ridículo, ao absurdo e ao antinatural. Os motivos dos grotteschi são retomadas por Giovanni Battista Piranesi (1720 - 1778) e Robert Adam (1728 - 1792) no bojo do neoclassicismo e passam a constituir traços eventuais das artes decorativas em geral, embora despidos das fantasiosas combinações dos grotescos da Renascença. O movimento neoclássico, ao rejeitar a linha curva e retorcida dos estilos anteriores (barroco e rococó), descarta de modo geral o grotesco, considerado excessivo e despropositado. Valorizado pelos românticos (para os quais a arte deve representar tanto o belo como o feio e o deformado), o grotesco se transforma, posteriormente, em categoria estética e literária para fazer referência a um tipo de descrição ou de tratamento deformador da realidade, que pode ter como finalidade provocar o riso e/ou obter uma intencionalidade satírica de caráter moral ou político.
Acompanhar o itinerário dessa noção no tempo e no espaço obriga a consideração de diferentes artistas, escolas e movimentos. Entre os flamengos, Pieter Brueghel, o Velho (ca.1525 - 1569), lança mão do recurso do grotesco em obras ilustrativas de provérbios (Parábola dos Cegos, 1568). Elementos grotescos também povoam as "paisagens infernais", de Pieter Brueghel, o Moço (1564 - 1638), por exemplo, Inferno com Virgílio e Dante, 1594. Mas entre eles é Hieronymus Bosch (ca.1450 - 1516) que se destaca pela composição de obras não convencionais, em que se mesclam elementos fantasiosos, criaturas meio-humanas e meio-animais, demônios e seres deformados, imersos em ambientes paisagísticos e arquitetônicos fantásticos (O Jardim das Delícias e A Tentação de Sto. Antão, ambas sem datação precisa). Dos alemães, podem ser citadas obras de Matthias Grünewald (ca.1480 - 1528), em especial a Crucificação do altar da Abadia Antonita em Isenheim, Alsácia, finalizado em 1515, que dá destaque ao corpo deformado e marcado de Cristo, e as de Albrecht Dürer (1471 - 1528), por exemplo, a série de gravuras que compõem o Apocalipse, 1498.
Na Inglaterra, as expressões do neogótico, com suas inclinações para os efeitos insólitos e surpreendentes, assim como a produção de Heinrich Füssli (1747 - 1825), cuja obra aspira a um sublime que tende ao fantástico e ao horrendo (O Pesadelo, 1781), podem ser mencionadas como possibilidades de uso do grotesco. Em solo espanhol, Francisco de Goya (1746 - 1828) é responsável por ampla produção em que os elementos grotescos se sucedem, seja em telas como Visão Fantástica, 1820/1821, seja nas séries de gravuras Caprichos, 1799, e Desastres de Guerra, 1810/1814. O universo monstruoso do belga James Ensor (1860 - 1949), com suas máscaras, esqueletos e anjos decaídos - aproxima-se dos de Bosch e Brueghel pelo recurso ao grotesco.
Os espaços tenebrosos, a temática da morte e as construções macabras ligam o nome do austríaco Alfred Kubin (1877 - 1959) à tradição do grotesco. Da mesma forma, a pintura de Edvard Munch (1863 - 1944) e o expressionismo de Ernst Ludwig Kirchner (1880 - 1938) aparecem como atualizações do grotesco, em obras que reeditam, e radicalizam, os ensinamentos românticos, por meio da deformação das figuras e imagens (O Grito, 1893, de Munch, e Marcella, 1910, de Kirchner). As vanguardas das primeiras décadas do século XX - sobretudo o surrealismo e o dadaísmo - se valem do grotesco em suas representações do fantástico, da dor e da loucura, bem como no tratamento dado ao sexo, ao erotismo e ao corpo.
Tomando o grotesco em sua acepção mais ampla, é possível pensar que o recurso à deformação de figuras humanas, com sentido dramático, pode ser encontrado na arte brasileira desde as obras do Aleijadinho (1730 - 1814). A produção de Alvim Correa (1876 - 1910) deve ser mencionada no que diz respeito à composição de ambiências grotescas; sua série A Guerra dos Mundos, 1903, com paisagens devastadas, seres estranhos - meio máquinas, meio animais - e formas humanas enlaçadas por animais, é exemplar do ponto de vista da criação de paisagens insólitas e fantásticas, com tom tragicômico.
Alvim Correa, Sem Título, s.d. Bico de pena e aguada sobre o papel, 29 x 20,5 cm. Coleção Particular |
Fonte. Grotesco: Definição, Enciclopédia Itaú Cultural - Artes Visuais, São Paulo, Brazil, 12.12.2006
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Da Antiguidade até hoje, o grotesco sempre esteve presente na cultura, mas mantido numa espécie de subclasse da arte por estar em desarmonia com a chamada “metafísica do belo”, construída até a Idade média e difundida como estética artística a partir do Renascimento. O “belo artístico” ficou associado a proporção, harmonia, simetria, forma, perfeição, ao bem e ao verdadeiro. Por outro lado, o grotesco, como estilo artístico, só foi descoberto no final do século 15, a partir de escavações em porões e grutas romanas (grotta, em italiano), nas quais foram encontradas pinturas que misturavam formas humanas às vegetais e animais. Ele combinava elementos heterogêneos e se desviava da “norma” artística predominante à época, o que estabeleceu, desde então, a marginalidade do estilo em relação ao clássico. Essa descoberta surpreendeu os contemporâneos pelo jogo insólito, fantástico e livre das formas vegetais, animais e humanas que se confundiam e transformavam entre si. O quanto este tipo de imagem distancia-se dos padrões clássicos pode ser avaliado pelas palavras iniciais da Arte Poética, de Horácio, um dos teóricos mais influentes da poética clássica: "Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo, ajuntar membros de toda procedência e cobri-los de penas variegadas, de sorte que a figura, de mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto; entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o riso?"
O vocábulo "grotesco" teve origem na língua italiana – la grottesca e grottesco, derivados de grotta (gruta). O termo foi utilizado para denominar objetos ornamentais e pinturas encontrados em escavações feitas em Roma no final do século 15. Suas formas eram inacabadas, abertas e fantásticas, metamorfoses de figuras humanas com animais, fugindo da representação real. O grotesco é o belo de cabeça para baixo é uma espécie de catástrofe do gosto clássico.
Com o tempo, o sentido de grotesco alarga-se, passando a referir-se não somente àquele tipo de pintura, mas a um estilo de representação que se caracteriza pelo exagero, o hiperbolismo, a profusão, o excesso. Como resultado do procedimento grotesco de mostrar a mistura de corpos, encontramos também, em geral com fins satíricos, a fusão do corpo humano com o corpo animal, como nas pinturas de Bosch e no conjunto de desenhos intitulado "Caprichos", de Goya. No século 18, o classicismo rejeita o grotesco por considerá-lo algo imaginado, sonhado, fantasioso, irreal, sem significado, de mau gosto, distante da inteligência e da verdade. Outra característica do grotesco é a ênfase, pela hipérbole, naquilo que Mikhail Bakhtin denomina de baixo corporal: orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz.
Existem algumas correntes discursivas que caracterizam o grotesco. Uma delas é a teoria da carnavalização, tendo como principal porta-voz Bakhtin. Essa corrente é utilizada para conceitualizar formações e conflitos sociais, ou políticos. Assim, o corpo grotesco é identificado como estrato inferior, degradado, a morte, o nascimento, o imundo, um corpo mutável, aberto, irregular. Diferente do corpo clássico, que é fechado, acabado, contido, simétrico, se identifica com a cultura superior e tem inspirações burguesas. Outra corrente debatida é o grotesco como estranho. Wolfgang Kayser defende o grotesco estranho, um mundo que se tornou estranho.
O grotesco, enquanto manifestação de formas aberrantes e escatológicas, é um fenômeno que se alastra pela vida contemporânea, com reverberações fortes nas artes em geral. A contrafação dos cânones esteticamente corretos seduz amplas faixas de audiência, predispostas a rir diante das situações chocantes que desfilam em telas e imagens. Com a sua propensão ao bizarro e ao vulgar, o grotesco é capaz de subverter o sentido estabelecido das coisas.
O jogo de contrastes entre rebaixamento e elevação remete ao conceito bakhtiniano de carnaval. Segundo Bakhtin, uma das características dos festejos carnavalescos na Idade Média e no Renascimento é a inversão da hierarquia vigente: personalidades elevadas como o rei ganham sua versão rebaixada, normalmente representada de maneira grotesca, como o Rei Momo; por outro lado, o povo se permite imitar trajes e maneiras fidalgas. Portanto, o carnaval transmite uma impressão de mundo às avessas. Além disto, o carnaval provoca os exageros relacionados com o baixo corporal, a profusão de cores e detalhes e uma multidão compacta que sugere a mistura de corpos, características do grotesco. No carnaval, como na obra de Rabelais, o grotesco, associado ao riso alegre, adquire um sentido positivo.
Moda grotesca: Callot, Balli di Sfessania, 1621-22 |